quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

"EU NÃO VOU PRO CÉU" - minibiografia




 Perdão. Eu nunca soube exatamente o que é isso. Posso afirmar que muitas de minhas escolhas foram livres da influência do que fizeram comigo (pelo menos no consciente).

Mas dizer que esqueci e que não dói mais seria de um mau caratismo que não cabe em mim.
"- Ah, mas tem gente que passou por coisa pior e não se abalam como você."
Tenho certeza disso, assim como tenho certeza que pessoas cometem suicídio por menos que isso. Dor é dor, ponto.
Só posso falar com propriedade sobre minhas dores. Se alguém sofreu mais e "superou",
parabéns
.
Tudo começa com uma mulher que decidiu ter um filho, mesmo não tendo a menor estrutura física, mental e financeira pra isso.
O desejo foi tanto que o filho foi feito, e aos 30 nunca viu a cara do provedor de metade do meus cromossomos. Isso faz falta? Honestamente não. O homem que assumiu a paternidade no cartório fez muito bem seu papel de pai. Mesmo que este não fosse lá um perfeito exemplo de ser humano. Calma que estes detalhes vão servir de estrutura para a história.
A criança foi parida e sofreu traumas entre os 0 e 8 anos, pois segundo Freud, apresenta varias características de personalidade da fase oral.
A primeira lembrança que tenho da vida é uma memória que se passa em uma cidadezinha de Minas Gerais.
Eu olhava admirado para uma mariposa enorme e negra em um muro branco.
Admiração era tanta que fui me aproximando cada vez mais dela. Então minha avó grita: "- SAI DE PERTO DISSO AI MENINO! Ela vai bater as assas e soltar um pó que vai te deixar cego!"
Eu nunca mais me aproximei de uma mariposa, que é hoje com certeza o animal que mais me dê pavor.
Lembro também do gosto de trevo, isso mesmo, eu me lembro de comer essa plantinha que crescia no quintal da minha avó. O gosto era bom.
A questão é "por que eu estava ali e não com um dos meus pais? que haviam se separado quando eu tinha por volta de 1 ano."
Eu nunca soube o motivo, mas este fato veio se repetir durante toda minha infância até a adolescência.
Por alguma razão eu não era bem vindo em lugar nenhum dos quais morei. Vamos a lista na ordem cronológica de minha memória nada confiável:
- avó
- uma mulher cruel cujo nome não me lembro, mas sem saber ela me fez enxergar o valor do amor de um cachorro muito cedo.
- tio
- Rita (mãe do Jefferson, um menino que aos 8 anos se trancava no quarto com uma vizinha de 13. O que acontecia lá fica no campo da imaginação) Rita também dizia muito que "mãe é quem cria, não quem pós no mundo".
- Mãe e meu padrasto que não fazia menor questão de fingir que gostava de mim.
- tio (de novo)
- mãe
- sozinho com um completo estranho chamado Max.
- sozinho com uma senhora evangélica.
- meu pai
- minha madrinha (tia Beth, que foi com certeza o melhor lugar que morei. Vale acrescentar que na casa da Beth, quando eu era criança e passava os fins de semana lá, foi o primeiro lugar que me senti amado. Protegido e tratado como deveria ser (como uma criança). O cheirinho gostoso de manhã, de
Ana Paula Dos Santos
que me vinham ao respirar depois de pegar no sono vendo juntos desenhos abraçados é com certeza uma de minhas melhores lembranças.
Tia Beth e Paulinha brigavam com minha mãe, pois elas queriam cuidar de mim, mas por alguma razão mamãe não permitia.
Aos 17 anos finalmente fui morar com elas duas. Eu tinha respeito, carinho, atenção, um quarto, um lar.
Passar por todos estes lugares mexeu muito com minha cabeça, mas isso foi algo notado conforme eu saia da adolescência e entrava na vida adulta.
Eu ia crescendo e tomando consciência de toda negligência que sofri sem perceber na infância.
Mas eu passei por todo esse caos, sem perceber, por culpa do meu pai. Que aos meus 11 anos me deu de presente um livro chamado "Harry Potter e a pedra filosofal". Tau livro veio com uma dedicatória do meu pai dizendo algo mais ou menos assim: " procure ler o livro e não deixa-lo guardado. Ler faz bem para a escrita e também para próprio leitura. Te amo, Edson".
Mal sabia eu, nem ele, que este livrinho mudaria minha vida por muitos e muitos anos.
Por muito tempo eu me via como o menino magrelo que apanhava e morava com os tios cruéis e dormia no armário sob a escada.
Mas ao contrário de Harry, eu esperava que minha vida mudasse repentinamente com uma carta entregue por uma coruja, que diria que tanto sofrimento era por que ali não era o meu lugar.
Eu e Harry tivemos uma amizade simbiótica até meus 18 anos.
Eu me escondia do mundo em Hogwarts. Um lugar onde eu tinha amigos, que eu era amado. Juro por tudo que é sagrado, que minha imersão neste universo era tanta, que eu frequentava a escola usando o uniforme de Hogwarts, escrevia com uma caneta de pena e falava muito sozinho.
Viver neste mundo me protegia e salvava do mundo real que me esperava lá fora.
Poxa vida, como eu daria o mundo para ser capaz de fugir pra este lugar novamente hoje aos 30.
Enfim, voltando a linha cronológica de moradias, aos 16 anos conheci um carioca metaleiro, cabeludo e abusado. Não tínhamos a menor noção do poder que este encontro teria em nossas vidas...

Confesso que gosto disso tanto quanto você leitor. Mas nem o Batman superou a morte dos pais.
Voltamos um pouquinho a história do "carioca abusado".
Pouquíssimas pessoas sabiam meu nome de verdade. Eu era chamado de "Harry" ou de "Potter" por quase todo mundo. Afinal eu era o único vestido com o uniforme de Hogwarts aos 16 anos na rua de paquera.
Me chamavam de "viado" também, mas quando começou eu nem sabia o que era viado, e quando descobri o que era eu percebi que eu não era viado. Eu era MUITOOO viado. Mas este tema específico fica pra uma outra oportunidade.
Enfim, quando eu descobri que eu era viado, e não tinha menor condição de deixar de ser, eu me aproximei do viado da turma na minha sala.
Alex, você foi um presente na minha vida, gratidão ❤️.
Alex me levou para lugares que tinham muitos viados, e minha primeira reação foi: ânsia de vomito e nojo.
Eu nunca tinha visto dois homens se beijando na vida, mamãe me "protegia" deste tipo de conteúdo. Justamente para não ter um filho viado. Bom, deu tão certo que hoje 3 de seus 4 filhos são bichas, baitola e viadoosss! Muito viados, sem a menor condição de deixar de ser.
Depois de me ambientar ao lugar, troquei olhares com o menino que era "o gatinho do rolê" na época. E sinceramente ele era e ainda é rs.
Bom, chegou a mim a informação de que ele queria me beijar, e eu também queria beija-lo, mas não havia a menor condição de ter coragem pra fazer algo de cara limpa.
Me entupi de vinho barato (uma mistura de álcool Zulu com aroma artificial de uva).
Fui até o "gatinho do rolê" cambaleando. E antes que eu desse por mim ele me cercou na parede.
Lembro como se fosse ontem, eu disse: "- eu não sei beijar". E de fato não sabia. E ele respondeu: "Só explore a minha boca com a sua língua". Melhor ensinamento ever kkk.
E depois que tudo aconteceu eu pedi desculpas, com muita vergonha, a ele por estar levemente excitado. Ele riu.
Quando fui descobrir seu nome, adivinha!... Roni. O mesmo nome do melhor amigo de Harry Potter.
Se havia alguma dúvida da existência de destino, bom, aquilo foi sua prova de existência.
Muito rápido eu e Roni começamos a namorar. Mas aos meus 17 pra 18 anos, eu ainda era virgem.
Virgem por vários motivos: medo, um pouco de vergonha, nojo e o principal, por mais que eu amasse o Roni, algo me dizia que não era minha hora ainda. E eu respeitei isso.
Bom, lembra do "carioca abusado" que comentei? Pois então... O mesmo ganhou este título por ter surgido no meio do meu namoro com Roni. A primeira frase que saiu de sua boca foi: " Eae, já é ou já era?".
Que abusado!
Mas eu gostei da ousadia, e respondi:
" Prazer, sou Harry. Que tal começarmos assim?"
Se desenrolou um papo em grupo ali, e eu deixei claro para o todos que eu estava com o Roni, e feliz com ele.
O carioca tinha ganhado minha atenção, mas ele tinha a cabeleira de um metaleiro que ia da cabeça até a bunda (o que eu pessoalmente não gostava, e ainda não gosto).
Pensei comigo: "poxa, esse cara deve ter levado anos pra deixar esse cabelo crescer assim. E deve ama-lo. Não tenho o direito de dizer: Se vc cortar o cabelo posso pensar na sua proposta do "já é ou já era".
O tempo passou. E aos meus 18 anos eu ainda era virgem. O Roni havia terminado comigo e eu estava arrasado.
Como no primeiro beijo, fiz a mesma coisa, me entupi de vinho barato e pensei: "quer saber, vou transar com o primeiro que aparecer hoje".
E assim fui cambaleando até o fim da rua, onde alguém me pegou pelo braço e disse: "IAE, já é ou já era?". Não, não era O carioca abusado, mas era outro carioca abusado rs, bom, claro que respondi: "já é" e nos atracamos em um beijo apimentado.
Em algum momento este carioca disse: "- bora dormir junto?" E sem pensar eu disse: "bora". Então ele falou: -" sou do Rio, mas estou hospedado na casa de um amigo. Tudo bem pra você?" Bêbado como eu estava é claro que disse que estava tudo bem. Então fomos em direção ao amigo dele para informar que eu dormiria na casa dele... E adivinha quem era o amigo do carioca abusado, O carioca abusado número 1. Com a cabeleira raspada, o que o deixou mais lindo, e ele estava com seu namorado que na época era A MINHA CARA.
Fiquei sóbrio tão rápido que nem quando uma criança está riscando a parede sem perceber o adulto, e de repente o adulto fala : "bonito em..." Sabe esse tipo de susto? Pois então.
Desisti quase que imediatamente que não iria mais pra casa dele com o carioca abusado 2.
Fui embora bem frustrado aquele dia. Não tinha perdido a virgindade, e o carioca lindo cortou o cabelo e estava namorando. Porr@ se eu soubesse que ele ia cortar o cabelo eu tinha me grudado nele faz tempo.
Devido a muitas reclamações de moradores da rua, onde todos nós viados nos encontrávamos pra fazer viadice, a polícia chegou e espantou geral com tiros de bala de borracha e toda gentileza policial que todos nós conhecemos ( #vidasnegrasimportam ).
Perdemos o ponto de encontro, como eu veria O carioca abusado 1? (que aquela altura eu já sabia que seu nome era Rafael.
Eu procurei, mas não o achava em nenhum dos lugares gays que fui.
Lembra o destino? Que lá atrás esfregou sua existência na minha cara com o Roni. Pois bem, ele voltou com tudo. Comecei a encontro o Rafael em lugares absolutamente inesperados. Eu ia a uma festa, ele estava- lá, no mercado, ele estava na mesma fila do caixa, no bar, em meus sonhos... Foi surreal. Mas ele estava namorando, e eu seria incapaz de fazer uma safadeza desta de dar umas investidas em um homem comprometido.

Eis que um dia aleatório de 2009, eu havia acabado de ser promovido pela primeira vez na vida, e ao sair da escola na Av. Paulista, eu tentava convencer (sem sucesso) meus colegas de classe a tomar uma cerveja comigo para comemorar.
De repente um dos meus colegas me cutuca dizendo: "- Acho que aquele cara está te chamando".
O cara era o Rafael.
Educadamente fui cumprimentá-lo. Ele estava esperando alguém, solteiro. "- Hoje vc não escapa" pensei comigo. E sem nenhuma dificuldade o convenci a tomar uma cerveja comigo.
Eu estava mais dado que panfleto na rua, mas ele parecia não notar. O tempo foi passando e eu insisto em ser vulgar sem ser sexy, ou o contrário. Quando ele me disse que o menino havia chegado e que ele iria ao metrô buscá-lo, eu entrei em pânico e soltei "- tudo bem, vá lá buscá-lo, mas antes você pode dar um beijo?"
Ele pareceu tão surpreso quanto eu com a frase dita. E nos beijamos. Não sei se foi romântico como a Disney havia me prometido, mas foi o suficiente para que o garçom do bar fosse a nossa mesa e disse-se: " vocês podem parar? Tem clientes reclamando". Juro que hoje tau pedido parecido com isso viria carregado de um discurso pronto e cheio de ódio sobre discriminação. Mas no dia nenhum de nós disse nada.
Os detalhes de como terminou está noite conto para os mais íntimos, mas sai tão virgem quanto entrei.
A grande surpresa foi no dia seguinte, quando estava saindo do trabalho e lá na porta estava um Rafael com brilho no olhar me esperando.
Fiquei bobo por uns 10 minutos.
Tempo suficiente para ele decidir que iriamos almoçar em uma churrascaria ali perto.
Tadinho, a intenção era boa, mas sou vegetariano e tenho pavor de pedaços de animais oferecidos no espeto.
Então de forma orgânica fomos nos aproximando. Na época eu estava morando com minha madrinha Beth. Mas eu mais dormia na casa do Rafa do que onde de fato eu morava.
Os dias iam se passando e nada de sexo de fato. Certa vez ele me disse no escuro quando estávamos deitados juntos: "- parece que você tem uma armadura, e quero desmontá-la."
Ele estava certo, eu vivia na defensiva, uma vez que a vida mais me jogava pedras que presentes.
Até aquele momento todos que amei haviam me machucado muito, logo, a armadura ia engrossando com o tempo.
Porém em uma tarde chuvosa, no apartamento quase sem mobília na Avenida Paulista, eu desmontei a armadura. Embora nunca tenha existido um pedido de namoro, eu sentia que estávamos namorando. Assim foi minha primeira vez.
A partir dai, ele me deu uma cópia da chave de seu apartamento. Eu poderia tirar a armadura, estava em casa.
Então certa noite eu estava saindo da escola e perguntei se ele estava em casa pra gente se ver. Ele respondeu que estava na faculdade, então resolvi fazer pra ele uma surpresa. Fui ao apartamento e abri a porta com minha cópia da chave. Entrei e quase ao mesmo tempo ele saiu no escuro no quarto. Nu.
Juro que a primeira coisa que me veio a cabeça foi: "nossa, já está me esperando pronto!" Ai a ficha caiu... Não estavamos sozinhos no apartamento.
Eu não sabia o que dizer. Mais uma pessoa que eu abria a armadura e me golpeava no peito.
Fui embora sem dizer nada.
Se não éramos namorados, por que raios ele havia me dado a chave do apartamento? Nada fazia sentido pra mim naquele momento.
Houve um pedido de desculpas, e eu aceitei, afinal já era tarde, eu o amava.
Em pouco tempo ele me surpreendeu mais uma vez, pedindo para que eu fosse morrar com ele.
Um dia, sem aviso prévio, fomos a casa da minha madrinha pegar minhas coisas pra ir embora. Foi quase um barraco.
Então em pouco tempo eu lá estava, onde estou até hoje, minha casa. Finalizando a lista de moradias.
Naquele tempo usávamos o MSN que é tipo o avô do WhatsApp. Eis que alguém desconhecido entra em contato com a frase: "- olá, você é o que do Rafael (e disse o nome dele completo), eu logo pensei "poxa, se a pessoa sabe até o sobrenome deve ser importante". Eu respondi: "namorado" e o desconhecido respondeu: "prazer, eu também"
BOOM!
Liguei imediatamente para ele, e claro ele negou tudo. Porém ele não contava com a esperteza do outro namorado, ao qual ele ligou em seguida pra saber por que ele estava me procurando. O tau namorado gravou a ligação, e mandou o áudio pra mim.
Eu juro que não entendia mais nada, por que o cara me tirou de onde eu morava pra morar com ele se não havia pretensão monogâmica?
Veja bem, uma coisa é chegar em casa e pegar ele com outro. Outra coisa e alguém se apresentar como namorado também. Ou seja, havia convivência, afeto entre eles.
Mais uma vez eu não sabia o que fazer.
Mas como todo tolo apaixonado, aceitei o pedido de desculpas.
Os anos foram passando e eu tinha tanto chifre que já tinha virado rotina. Eu achava no carro escovas de dente, celular e outras coisas de outros meninos que passavam por ali.
Então entrou um personagem muito importante na minha vida:
A rua Augusta.

Após anos e inumeras traições inexplicáveis, finalmente entendi o que o Rafael estava tentando me dizer: "amor e sexo não estão necessariamente ligados. Ele não conseguia ser monogâmico."
Então decidi participar da brincadeira, o famoso "tá no inferno, abraça o capeta".
Ele me apresentou seu lugar de caça, um modesto barzinho que não ficava exatamente na rua Augusta, mas era literalmente do lado.
Começamos a beber juntos, até o dia clarear, ele transava e beijava a noite toda (não era comigo é claro) e eu estava lá para também desfrutar desta poligamia, mas eu não achava ninguém interessante e bonito o suficiente para beijar, sexo então nem pensar.
Eu não conseguia entender como para o Rafael era tão fácil quanto tomar um copo de água.
E pior, agora eu permitia tudo, uma vez que ele iria fazer de todo jeito, preferi saber de tudo diretamente.
Doía, doía muito. Mas eu não podia chorar na frente de todos. Muito menos expressar qualquer descontentamento com o que se passava.
Então o dia que iria mudar minha vida aconteceu.
Eu estava no banheiro lavando o rosto para que ninguém percebesse que eu estava chorando. Ao abrir a porta dei de cara com um "amigo", e ele percebeu que eu estava chorando, e também sabia o motivo. Então este amigo entrou no banheiro e me levou junto com ele. Ele me mostrou um pino de cocaína, e disse: " usa que vai passar". Eu já tinha experimentado antes a droga em questão, e não tinha gostado. E foram casos tão isolados que nem contava pra mim. Pois bem, eu usei. E funcionou. Funcionou muito.
A dor sumiu, a autoestima foi lá no alto, em questão de segundos eu era o cara mais fod@ do lugar, e dane-se o que o Rafael estava fazendo.
Comprei minha primeira grama por 20 reais.
Então uma rotina se estabeleceu, nós íamos pro bar, o Rafa beijava, doía, eu cheirava, passava, íamos embora.
Então a situação começou a piorar drasticamente para os dois. Eu comecei a usar mais, íamos ao bar com mais frequência, agora os garotos não ficavam só nos beijinhos no bar, eles iam pra minha casa, transar com o meu marido na minha cama, enquanto eu ficava dopado na sala vendo TV.
Sim, eu disse certo, MARIDO. Pois em meio a todo esse caos o Rafael me pediu em casamento, com a mesma empolgação que você deve ter fritando um hambúrguer. Eu aceitei.
Então a situação toda começou a tomar uma proporção que não dava mais para administrar. O Rafa descobriu o que eu estava usando, e naquele momento não fez a menor diferença. E honestamente, eu já tinha me afeiçoado a sensação da substância, eu não usava mais só para esconder a dor de ser corno conivente, eu usava independente do contexto.

Pode parecer pra alguém de fora que estou responsabilizando o outro por minhas compulsões, mas não é bem assim. O objetivo é criar um cenário onde se possa imaginar por que alguém toma decisões tão erradas. Como é possível alguém decidir algo no calor do momento sem ter idéia de como isso irá impactar toda sua vida. Enfim, pra ficar mais fácil exercitar a empatia.
Voltando a história, com o tempo o Rafa foi percebendo o quão mal me fazia seu corportamento que até então desconsiderava como eu me sentia, mas já era tarde, agora era minha vez de brincar. De ceder aos impulsos reprimidos de toda uma vida, sem a menor consideração ao próximo.
Então, sem que eu percebesse, o cenário mudou. Eu ia beber e me drogar sexta, sábado e domingo, enquanto o Rafa ficava sozinho em casa torcendo para eu voltar vivo e inteiro.
Acontece que ele se tornou o marido perfeito muito rápido. Tão rápido que não tive tempo suficiente para perceber. Mas uma coisa eu percebi rápido, a droga estava destruindo meu corpo e minha vida.
Então quase de imediato pedi ajuda. Pra muitas pessoas, profissionais e familiares, acontece que absolutamente ninguém era capacitado para me ajudar... Era eu e o Rafa, sozinhos, buscando todo tipo de tratamento e ajuda possível.
Pode parecer incoerente pra quem vê de fora, mas eu buscava ajuda ao mesmo tempo que usava de forma compulsiva.
A princípio uma internação parecia o método mais eficaz... Doce engano. O que aprendi com todas as minhas idas e vindas de clínicas era que elas serviam apenas para trancar a pessoa e dar alívio temporário para o familiar. Mas fora isso, sua eficácia era tão boa quanto acorrentar a pessoa na cama em casa. Você tira a criança da briga, mas não tira a briga da criança.
Percebi que o que de fato funcionava, era um acompanhamento pscicologico e claro, medicamentoso.
Uma terapia demorou a fazer efeito em mim. Eu resistia à vontade de falar o que realmente pensava e sentia em relação a pessoas e família, minha mãe em especial.
Tentei de tudo que me apareceu como solução: internação, medicamentos pesados, igreja, macumba, hipnose, outras drogas, enfim... Eu topava qualquer parada para me ver livre da dependência. Cheguei a conseguir ficar alguns meses limpo me focando muito, me entupindo de remédio, indo a terapia e lutando muito pra não comprar droga que era vendida literalmente há um quarteirão de casa.
Costumo dizer que vc só pode entender o desespero de uma crise de abstinência se você passar por ela. A coisa mais parecida para se experimentar a sensação da abstinência, sem o uso da droga, é a vontade de ir ao banheiro, ou a vontade de comer. Sabe quando vai dando a hora do almoço e aquela reunião nunca acaba? Primeiro você começa a olhar o relógio e começa a contar os minutos de atraso para almoçar, então seu estômago reclama, seu corpo também, e isso vai crescendo, crescendo, e a reunião não acaba, e chega um momento onde você já não está mais absorvendo informação nenhuma, você só quer almoçar, e isso vai te enlouquecendo... Pois então, é parecido com isso.
Então por acaso ou destino, precisei me mudar às pressas de onde moravamos. Nossa prédio parecia mais com a arca de Noé do que um condomínio. Uma enxurrada de agua e lama destruiu o prédio. E em pouco tempo estávamos recomeçando a vida em outra cidade.
Era dia 1° de Junho de 2019, uma casa nova, uma nova chance de recomeçar, pra mim e minha família que eu havia criado. Meus bichos e meu marido.
Tomado de vontade de nunca mais usar, com uma casa cheia de coisas para tirar das caixas e montar toda uma nova história.
Foi bonito. E durou 1 ano. Neste pouco tempo experimentei a liberdade. A felicidade completa apenas por existir...
Mas como você já deve ter notado, não chegou a completar 2 anos.
Hoje é dia 12 de Janeiro de 2021. Com trinta anos nas costas e mais ou menos 7 anos de luta diária.
Meu marido é literalmente perfeito. Cuida de mim, dos animais, da casa, cozinha e trabalha. Nunca reclamou de nada, mesmo sendo evidente que ele é a única estrutura firme da casa.
As vezes desejo que ele tenha alguém melhor. Uma pessoa que possa somar e valorizar sua vida. Eu sou literalmente uma bomba sem cronômetro, posso explodir daqui há um ano, posso explodir dentro de cinco minutos.
Eu tentei partir com um restinho de dignidade desta vida. Mas eu sobrevivi 😕. O que só piorou a situação pra todos.
Depois de muito refletir em uma noite dopado, é que se existe um céu, esse lugar utópico de paz e bomdade plena, onde todos se amam e vestem roupas brancas... Eu não vou pra lá.
Pelo menos é o que me dizem... Afinal que Deus seria misericordioso com um viado, tatuado, viciado, feiticeiro e suicida?
Eis uma mini biografia do que vivi até hoje. Com certeza tem muita coisa faltando, boa e ruim, minha história de vida não se resume a isto.
Mas esta é a parte importante que eu gostaria de destacar nesta minisérie.
Se você leu ate aqui, um beijo e gratidão. E para aqueles que também não vão para o céu, pode embarcar comigo que cabe muita gente.
E.Lima